Por: Alex Albuquerque
Mais de duzentos relatos de moradores da favela da Maré, no Rio de Janeiro, solicitam que a Justiça interceda contra operações policiais abusivas. Neste ano, 27 pessoas morreram em decorrência dessas ações
“Um dia, eu estava na escola, no pátio, fazendo educação física. Aí, de repente, o helicóptero passou dando tiro pra baixo. Todo mundo correu para o canto da arquibancada”, escreveu um garoto. Esse é o conteúdo de uma das mais de 200 cartas anônimas enviadas em 2019 para o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro por moradores da favela da Maré para denunciar os excessos da política de segurança do governador Wilson Witzel. Em todas elas, o que se lê são histórias de violência indiscriminada. Mais: pedem respeito à favela, às crianças e aos trabalhadores. Há demonstrações de medo. E de muita tristeza.
As cartas denunciam operações policiais em que agentes da lei entram nos barracos, sem mandato judicial, reviram tudo e agridem moradores, além de impedir o trânsito livre dentro das comunidades, inviabilizando o trabalho nas creches, escolas e postos de saúde. “A forma de bater na nossa residência já é assustadora, batem, quase derrubam a porta e fazem uma zona nas casas dos moradores que estão trabalhando. Até quando estamos em casa, somos reféns do esculacho que fazem com a gente que mora na favela”, registra um dos textos escritos pelas crianças e enviados ao Tribunal.
Escolas atacadas
No conjunto de favelas da Maré sobrevivem 147 mil pessoas, que solicitam socorro das autoridades desde junho de 2016, quando houve uma nefasta operação policial, no período noturno, no interior da comunidade. Uma fortuita ação do plantão judiciário impediu a continuidade desse tipo de procedimento. No ano seguinte, ocorreram 41 operações policiais cujas consequências foram vinte mortes. Os moradores entraram com uma ação civil pública para diminuir os danos causados durante as ações. Em 2018, as operações caíram pela metade, com 19 mortes. Esse ano, no entanto, o Tribunal decidiu suspender a ação argumentando que os governos democraticamente eleitos têm direito de definir suas políticas públicas de segurança, sem intervenção do Judiciário. Tragédia anunciada. No dia 6 de maio, oito jovens foram mortos com indícios de execução sumária na favela Conjunto Esperança.
A ONG Redes da Maré, que produz relatórios que notificam a Ouvidoria e a Defensoria Pública do estado, juntou as 200 cartas a um documento no qual acentua a importância de a Justiça rever sua decisão e tomar alguma medida que altere a forma de atuação das forças policiais. Segundo Lidiane Malanquini, do Eixo de Direito a Segurança Pública, “a Justiça não pode se restringir apenas a um diálogo entre moradores e a policia. É importante que todo o poder público se envolva na discussão sobre políticas de segurança”.
Cartas de crianças denunciam operações policiais em que agentes da lei entram nos barracos sem mandado, reviram tudo e agridem moradores
O governador Wilson Witzel demonstra postura rude e belicista, e sua política de segurança se baseia na lógica de guerra e no enfrentamento armado das organizações criminosas. Ao cercar os bandidos, acaba encurralando dentro de suas casas moradores que não têm nada a ver com práticas de crime. “Existem crianças e jovens dentro da comunidade que sonham em se formar médicos, advogados, professores, mas os sonhos são interrompidos quando as ações policiais impedem as aulas”, diz um trecho de outra carta.
Infelizmente, apesar de os juízes levarem a sério, como era de se esperar, todas as denúncias, o Poder Judiciário, em sua própria definição, pouco pode fazer – para atuar, ele precisa ser provocado. Tal provocação teria de vir da própria polícia (o que é óbvio que não acontecerá) ou do Ministério Público por meio de uma denúncia devidamente formalizada. Assim, os moradores, se não quiserem morrer em decorrência da violência de Estado, vão ter de entrar com outra ação. Enquanto isso, a favela da Maré continua diuturnamente à mercê de sua própria sorte.
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